O espetáculo solo traz à cena a invisibilidade e exclusão da mulher negra na estrutura social, que privilegia e mantém o poder em determinada classe e gênero. A peça aborda questões fundamentais do universo feminino como maternidade, solidão, identidade, amor, racismo, identidade de gênero, aborto e religião. A plateia, a partir da sua disposição espacial, é colocada frente a frente para se ver diante de questões como gênero, raça e classe. Ao longo da encenação a personagem compartilha suas reflexões sobre passado, presente e futuro junto ao público.  O mesmo mito contado agora a partir de um olhar feminino e negro, carregado de um canto forte e rasgado, inspirado no jazz, blues, hip hop e acalantos africanos que propõem esteticamente um caminho atemporal para o grito de Medeia.

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Aqui temos uma mudança radical: Jarbas Bittencourt, pela primeira vez, não faz a nossa direção musical e Roberto Brito assume o posto com uma trilha lindíssima.  Também é Roberto quem acompanha o primeiro solo do Vilavox, a “Medeia Negra“, idealizada por Márcia Limma. Piano, cajon, coco, triângulo e outros pequenos instrumentos de efeito percussivo são usados por Roberto.

O texto de “Medeia Negra“, de Márcio Marciano e Daniel Arcades, convida ao canto, como em O Castelo da Torre, também de Marciano. Vemos em cena uma atriz usando e abusando dos recursos vocais que foi construindo ao longo da sua carreira, dentro e fora do Vilavox.

E o que ouvimos em “Medeia”?  Todas as vozes de Márcia: cantando lindamente, usando sua extensão vocal seja cantando seja colorindo seus textos, numa tacada que leva quase uma hora, falando aquilo que escolheu falar. Marcia grune, grita, fala manso, ri, se dilacera em cena.  Muitas vozes guardadas e outras que encontrou no caminho de sua pesquisa no complexo presidiário feminino de Salvador soam em Medeia. Aqui está também a tal voz de que falávamos.

No Álbum Trilhas do Vilavox, é “Panorama”, que sintetiza Medeia Negra, na voz da própria Márcia.  


O que vejo nos vastos confins desta terra, entre florestas, caatingas e cerrados?
Os mesmos sem eira, esfolados, dentre os quais as mesmas mulheres
De corpos surrados, batidos, marcados, feito manada de feras domadas
Sevícia, violência, estupro e morte

O que vejo na topografia errante das grandes cidades, sob a vaga alucinada das mercadorias?
Hordas de espantalhos, com seu cortejo de mulheres
Sevícia, violência, estupro e morte

O que vejo nos presídios desta terra, aflorados como pústulas na carne carcomida?
Tropas aviltadas pelo convívio do crime, pelo regime do medo, fileiras de centenas de mulheres
Sevícia, violência, estupro e morte

O que vejo no chão das fábricas, nas praças de comércio, nas filas dos hospitais, nos coletivos sempre lotados?
O mesmo contingente de miseráveis, com sua proporção de mulheres duas vezes miseráveis
Sevícia, violência, estupro e morte

O que vejo nos becos e sarjetas das metrópoles atormentadas?
Fantasmas do vício e da fome, entre tantas mulheres perdidas
Sevícia, violência, estupro e morte

Trecho Musical Medeia Negra
Canção Panorama