Primeiro de Abril traz à tona alguns aspectos da história da ditadura militar no Brasil. Privilegiando a “história como atriz principal”, a peça pontua acontecimentos marcantes de todo o processo que culminou com o golpe, bem como suas conseqüências, passando pelos atos institucionais, pela violência da tortura e pelos posteriores golpes “irmãos” em outros paises da América Latina. Mesmo com forte didatismo, a peça propõe uma experiência estética singular, pois a banda ao vivo, a música original de Jarbas Bittencourt, os 15 atores em cena, um cenário que traz um cilindro de água com 2 metros de altura e as coreografias, assinadas por Lauana Vilaronga, fazem do espetáculo um musical diferente e politizado.

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A experiência dramatúrgica de “Almanaque” indicava a possibilidade de avançar na direção da autonomia criativa do grupo, provocando, em 2004, a criação de um texto/espetáculo que equiparava melhor sua dramaturgia à presença musical, mais autoral, mais simbiótico, onde voz cantada, falada e a cena teatral ganham contornos de espetáculo musical. Talvez seja o espetáculo do grupo onde voz cantada e falada se misturam mais e onde a dramaturgia se apoia(e vice versa) na música. “Primeiro de Abril – Um Espetáculo sobre o Golpe Militar”  – se concentra no período imediatamente anterior ao golpe, a este, de fato e às suas consequências, no período ditatorial. O então presidente João Goulart, portanto, é personagem central na peça. Numa das passagens, em que Jango telefona para o general Kruel o diálogo vira música:


AMIGOS, AMIGOS, VERMELHOS À PARTE
DE COMO A ÚLTIMA VOZ GRAVE SUMIU DO CORO

JANGO
Alô?

AMAURY KRUEL
Meu amigo, senhor Presidente.

JANGO
Eu queria mesmo lhe falar!

AMAURY KRUEL
Presidente então fale o senhor.

JANGO
Fale, foi você quem ligou.

AMAURY KRUEL
Presidente, eu preciso é saber
Você tem que me prometer
Jogue fora os comunas vermelhos
Que eu ficarei com você

JANGO
Meu amigo Amaury Kruel
Sabes que sou um político
Não posso abrir mão dos vermelhos
Do povo e nem dos milicos

AMAURY KRUEL
Exagero teu, sabes disso
Não podes querer entoar
A foice e o martelo em uníssono
Cantando com um militar

CORO (desafinadíssimo)
Exagero teu, sabes disso
Não podes querer entoar
A foice e o martelo em uníssono
Cantando com um militar

JANGO
Kruel, Kruel, Kruel,
Venha ao Rio de Janeiro
Vamos parlamentar
E salvar o país inteiro

AMAURY KRUEL
Jango, Jango, Jango
Diante do que me disse
Só resta, dizer-lhe: adeus
E juro, um pouco triste

CORO (Afinadíssimo)
E agora cantamos em coro
Celebrando o final do namoro
Kruel traiu João Goulart
E já se prepara para marchar

Nessa cena os telefones usados estavam microfonados e o diálogo musicado entre Jango e de Amaury Kruel oferece esta relação amistosa entre voz falada, cantada e a dramaturgia.  Isso se repete na cena em que a CIA distribui pacotes de dólares a várias instituições que apoiaram o golpe, ou noutra, onde lideranças políticas conspiram junto aos militares também em favor do golpe. Essa dinâmica propõe a música como parte intrínseca da peça e não um “vamos parar a narrativa aqui, agora, para apresentar um música, que tem meio que haver com a peça”!

Em “Primeiro de Abril” o uso de áudios originais de discursos políticos e de propagandas de rádio da época, fossem como suporte para recriá-los, fossem como BG para uma sobreposição da fala do ator – como no caso do discurso de Auro de Moura Andrade, em que o ator Cláudio Machado dobrava – traz para a encenação matrizes sooras muito distintas umas das outras: do rock pesado tocado ao vivo à batida suave e compassada da corda batendo no chão numa cena de brincadeira de criança, dando o bit da música executada ali e agora; do barulho de água provocado pela queda do homem num tanque ao estridente grito de uma mulher torturada, ou ainda o silêncio de uma outra, que “falava” por meio de frases escritas em cartazes com batom.

O conteúdo musical de “Primeiro de Abril” foi tão potente, que nos vimos trazendo para o show “Trilhas do Vilavox” seis músicas deste espetáculo.  Se tivéssemos fôlego seriam mais. Nos tempos de hoje “Primeiro de Abril” parece ficar à espreita, doido pra voltar a cartaz. Aqui duas participações especialíssimas na gravação do álbum: Pedro Pondé em “Operação Gaiola” e Andrea Martins em “Hello My Brother“. Ambas podem ser vistas e ouvidas nos clips abaixo.

Depoimento de Jarbas Bittencourt
Depoimento de Gordo Neto
Espetáculo Primeiro de Abril:
Clip/Canção “Vão das Vozes”:
Clip/Canção “Hello My Brother”
Clip/Canção “Primeiro de Abril”
Clip/Canção “Operação Gaiola”
Clip/Canção “Nome aos Bois”
Clip/Canção “Senhora”