Resultado de uma longa pesquisa (desde 2010) sobre a história da família Garcia D´Ávila, grande latifundiária desde os tempos da colônia que atravessou a história da Bahia e do Brasil com grande concentração de poder econômico, político e militar e construiu a maior edificação colonial, ainda hoje com suas ruínas preservadas na Praia do Forte, a peça, com texto desenvolvido pelo grupo Vilavox em processo colaborativo e redação final do dramaturgo e diretor Marcio Marciano, prioriza dar voz aos negros e índios, buscando mostrar uma visão dos oprimidos durante o processo histórico da formação de nossa sociedade.

Paredes, portas, janelas, escadas e cômodos de uma casa contam a história, assim como a voz dos oprimidos e mesmo cenas em que aparecem alguns dos personagens da família Garcia D´Ávila formam uma composição cênica bastante híbrida, com passagens profundamente dramáticas, grandes coros, cenas individuais, em duplas,cenas cômicas e solos musicais.

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Para montar “O Castelo da Torre“, o Vilavox fez uma audição para completar o elenco.  Cerca de 130 pessoas se inscreveram. Nos surpreendeu. As condições oferecidas não eram lá essas coisas, mas mesmo assim, o número foi bem expressivo.  Isso denotava, para nós, o interesse pelo trabalho do grupo. Nessa audição/oficina, que durou bem uns 15 dias, trabalharam Meran Vargens, Jarbas Bittencourt e Maciej Rozalsjki. O curioso é que a grande maioria dos inscritos entendiam que “deviam saber cantar” para entrar em algum projeto do Vilavox.  Havíamos construído essa imagem no nosso meio teatral. Ao final da seleção escolhemos alguns atores e atrizes(mais do que estava previsto, como sempre) e dentre eles já bons “cantores” e outros nem tanto. E na verdade sempre foi assim. A partir do momento que nos tornamos um grupo de teatro, somos muito mais atores e atrizes que cantam do que cantores/cantoras que atuam.

Esse exemplo é para reafirmar o papel formador do grupo.  Sempre trouxemos profissionais para nossa reciclagem e, todas a s vezes, abrimos esse processo à comunidade artística. Ernani Maleta, Tânia Farias, Grupo Vertigem, Rômulo Avelar, Bernhard Bub, Marcelo Jardim, entre tantos outros.

Voltando ao “Castelo…“. As primeiras investidas de improvisações propostas por Meran Vargens, diretora,  trouxeram cenas inusitadas, repleta de vozes que vinham de personagens peculiares: um chicote, uma cadeira, um colar, uma janela, uma parede, uma sala inteira, um vestido.  O objetos e espaços de uma imaginada Casa da Torre – tema central da peça, eram quem mais “falava”. A “voz” da Casa, que tudo viu ao longo de “trezentos anos de barbárie e glória” era tudo que precisávamos para entrar naquela história barra pesada. Coisificar o humano ou humanizar as coisas(neste caso dando-lhe voz) costuma fazer parte das investidas da comédia, pois na maioria das vezes isso provoca riso, ou ao menos um estado de relaxamento. Certamente não era isso que iria para a cena, finalmente, mas seguramente foi muito importante para nós esta fase de ensaios mais relaxada, servindo como uma preparação para chegar ao ponto: as vozes abafadas dos negros e índios no processo de colonização do Brasil.

Sem instrumentos harmônicos ou melódicos tocados ao vivo, mas com presença de percussão em muitos momentos, a música do “Castelo” oscilava entre solos à capela, bases para canto solo ou coro e interferências vocais incidentais.  A base gravada, os atabaques quebrando tudo de lá “das sacadas dos sobrados da velha São Salvador” e o megafone usado no final, na rua, como que chamando o público para cantar em uníssono não a música em si, mas uma palavra de ordem que todos intuiam muito bem, conclamava o passado e o presente do centro histórico a olhar para nós mesmos:

Há no seio dessa arquitetura
Uma árvore invisível
Cujas ramas milenares
Se estendem até os nossos dias
Uma árvore cujas raízes profundas
Se alimentam de sangue e sêmen
Cujos galhos disformes se entrelaçam
Em arabescos de tortura e crime

Há no seio dessa arquitetura
Uma árvore invisível
De frutos amargos e híbridos
Gerados do encontro inexorável
Entre poderosos e oprimidos
Uma árvore cujas raízes
Se alimentam da memória e da luta

Há no seio dessa arquitetura
À sombra da genealogia dos D’Ávila
Com sua descendência proprietária assassina
Uma outra espécie de genealogia
Em que negras, índias mamelucas e mulatas
Cobertas pela lascívia do branco homicida
Fizerem gerar uma outra descendência
Que não se envergonha do seu anonimato
Que se orgulha de seu espólio bandido
Uma descendência que não existe apenas reparação
Uma descendência que exige igualdade

Há uma “voz” da qual talvez não tenhamos falado até agora.  Não é a voz do ator, não é a voz afinada no coro, a voz daquele personagem. Há uma voz no Vilavox que é seu discurso, seus temas, suas contradições. Essa é a mais cara e a mais difícil de lidar, ainda que muitas vezes muito fácil de identificar. A partir do Castelo da Torre o grupo se defrontou com a dificuldade, maior talvez do que todas aos outras vezes, de achar o que em nós nos “afinava”. Escolhas foram feitas ao longo desses quase 18 anos e seguimos colocando sempre nossas obras na frente de tudo.  Ela, a obra, precisa ser o resultado daquilo que “queríamos falar”. Que assim seja.

Espetáculo Castelo da Torre
Genealogia